2 de maio de 2018

A rotina da mulher mais poderosa das Forças Armadas

Contra-almirante Dalva Mendes diz que militares não são 'salvadores da Pátria' e que o Brasil precisa ter 'ações sociais bem realizadas'
A contra-almirante Dalva Maria Carvalho Mendes em frente ao 1º Distrito Naval, na Praça Mauá, Rio de Janeiro (Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo)
A contra-almirante Dalva Maria Carvalho Mendes em frente ao 1º Distrito Naval, na Praça Mauá, Rio de Janeiro
(Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo)
BRUNO ABBUD
Às 11h30 de uma manhã de março, a contra-almirante Dalva Maria Carvalho Mendes, uma senhora baixa de 62 anos, farda branca, saia nos joelhos e passos curtos, atravessou o pátio do 1º Distrito Naval, à beira da baía de Guanabara, no centro do Rio de Janeiro. Como de costume — e conforme manda a regra — os militares que por ali circulavam logo se transformaram em estátuas. “Está vendo?”, disse o comandante Sérgio Vogel, auxiliar da contra-almirante há quatro anos. “Pode parecer simples, mas não é fácil transitar fora dos aposentos com alguém dessa patente. Você acaba interferindo na rotina da tropa”, completou, em referência aos grupos de marinheiros que paravam para bater continência enquanto a contra-almirante era fotografada para esta reportagem. Primeira mulher a alcançar o posto de oficial-general nas Forças Armadas Brasileiras, naquele dia ela estava pronta para sair de férias.
Dalva foi passear pelo Caribe na companhia de quarenta colegas da primeira turma feminina da Marinha brasileira. Em 1981, elas eram 203. “Algumas foram saindo ao longo do tempo, mas algumas foram se agrupando. Hoje a gente faz almoços juntas”, diz ela. Trinta e sete anos depois, elas são mais de 8.500 — o que corresponde a 10% da tropa. “Da minha turma, sou a única que está na ativa.”
Médica-anestesista formada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Dalva foi assistente de cirurgias, professora do Centro de Ensino e Treinamento de Anestesia da Marinha, vice-diretora de Ensino do Hospital Naval Marcilio Dias, cursou a Escola Superior de Guerra (ESG) e a Escola de Guerra Naval (EGN) até ser alçada ao cargo de contra-almirante, em novembro de 2012, por Dilma Rousseff. O posto equivale à patente de general de duas estrelas numa escala que se estende até quatro estrelas. É o terceiro na hierarquia da Marinha. Mais tarde, entrou para a reserva — mas foi convidada pelo comandante da Marinha, o almirante de esquadra Eduardo Bacellar Leal Ferreira, a voltar ao trabalho.
Atualmente, além de auxiliar Ferreira, trabalha como assessora direta do vice-almirante Edmar da Cruz Arêas, diretor de Saúde da Marinha. Sua sala fica no segundo andar da Diretoria de Saúde. Todas as manhãs, quando inaugura o expediente, uma campainha ecoa pelo departamento — o som é uma tradição que anuncia a chegada de um superior hierárquico. Cinco funcionários — um copeiro, um motorista, um segurança e dois auxiliares — a recebem com os dedos grudados na testa. Há água, café e bolo de fubá para todos. O gabinete é amplo e arejado, com o pé-direito alto e adornado com medalhas do passado sobre uma cômoda, circundadas por poucos livros, entre os quais o “Livro Branco da Defesa Nacional” e “Os Navios da Esperança - A Marinha nos Rios do Brasil”. Sobre a escrivaninha, fotos dos dois filhos (a filha é capitão-tenente da Marinha) e dos dois netos — só um defeito no fornecimento de energia destoa do ambiente organizado, ao produzir estalos repentinos e subsequentes no estabilizador conectado ao computador, o que às vezes tira a contra-almirante do sério. “A nossa luz aqui é muito legal, entendeu?”, diz ela, ao ser interrompida pela barulheira. “O pobrezinho ali fica gritando o tempo inteiro tentando estabilizar. Tem horas que fico enlouquecida, porque fica essa barulhada e dá uma agonia na cabeça da gente.”
Na maior parte do tempo, contudo, Dalva, como boa pisciana, é comedida — segundo quem labuta ao seu lado. A personalidade contribui para a monotonia da rotina no departamento. “Como almirante, a gente passa a ser administradora”, diz ela, que, diferentemente da maioria dos militares brasileiros, pouco transitou pelo país durante a carreira. “Evidentemente, dentro da nossa área técnica. No meu caso, a medicina.” Depois de se tornar oficial-general, atuou no Centro de Perícias Médicas e dirigiu o Centro Médico Assistencial da Marinha, que coordena todas as policlínicas da Marinha, destinadas aos militares e seus dependentes. “Hoje minhas principais ocupações são efetivamente relacionadas à informática”, conta. Ela passa o dia aprimorando a organização de dados dos militares. “Nós temos vários sistemas, um só de perícias, um só de atendimento, um para medicamentos e um sistema que efetivamente faz a cobrança de internações, cirurgias e exames.”
Vez por outra, ela própria recorre aos benefícios médicos. “Tive uma crise de coluna recente”, conta. “A gente chega numa idade que é aquela história da ‘junta’: junta tudo e joga fora”, acrescenta, aos risos. Mas não é bem assim. Pouco tempo atrás, beirando os 60, ela saltou da Pedra da Gávea de asa-delta. “Gosto dessas coisas enlouquecidas”, diz. Também aprecia atividades menos emocionantes, como pescar. “Normalmente faço RPG e Pilates”, diz. “Também adoro praia, mas o problema de ir à praia é que há gente demais na praia. Eu gosto de praia mais calma, aquela praia fora do verão, que o sol também não é tão forte, até porque sou muito clara e estou parecendo uma oncinha pintada, cheias de pintas brancas e pretas”. No Rio de Janeiro, quando quer se esticar ao sol, vai à Barra da Tijuca — ou toma um barco em Arraial do Cabo até a praia do Forno, com um “farnelzinho” a tiracolo.
A contra-almirante, que perdeu o marido há 12 anos, vive com a mãe, de 85 anos. “Somos duas viúvas morando juntas”, diz. Filha de pescador, aprendeu com o pai o que era o mar na Ilha do Governador dos anos 1960. “O que me lembro muito, que é uma coisa que me dá prazer, é a traineira”, diz. “A traineira tem um mestre, que vai procurando cardume, e eles são extremamente experientes, eles dizem assim: ‘Esse cardume não é comercialmente bom’. Mas tem aquele. E aí o barco para a máquina e solta um botinho onde está a rede, que vai cercando os peixes. É um trabalho de equipe para puxar a rede e trazer o peixe, que é o alimento daquele povo. Todos puxam a rede, até eu puxei a rede, porque eu estava lá.” Foi assim que conheceu as “agruras do mar”, segundo conta, e na traineira foi “batizada”. “Eles dão água do mar para você beber, você vomita o mundo, aquele cheiro de óleo maravilhoso que enlouquece a gente”, lembra. “Isso me marcou muito, para a vida toda”.
Quando a pergunta é sobre política, Dalva se esquiva. “Não gosto da política partidária”, afirma. “Gosto da política como filosofia, como arte. Esse negócio me deixa um pouco angustiada. É tanto partido que a gente fica perdido”, continua. Sobre a afeição por Bolsonaro entre certos militares, ela diz: “Os jornais estão falando bastante do Bolsonaro. Estou esperando ele apresentar as propostas dele assim como estou esperando todos os outros”. Votaria em Bolsonaro? “Não sei”, diz. “O voto é secreto. Mas estou observando. É lógico que vou considerar a integridade, isso a gente vai ter que ver de acordo com o que for sendo mostrado. A integridade é superimportante para mim, porque se a pessoa não for íntegra evidentemente não vai cumprir as propostas”.
Em sua opinião, quem pede a volta dos militares ao poder está confuso e amedrontado. “As pessoas confundem as coisas”, diz. “O que querem é que aumente a segurança, mas acabam visualizando que o militar é o salvador da Pátria. O país não precisa de militar, precisa de ações sociais bem orientadas e bem realizadas. A gente teve aqui no Rio de Janeiro a experiência da UPP, que se tivesse sido bem aproveitada talvez tivesse resolvido o problema da segurança. Mas só lembraram de botar o policial lá. Cadê a ação social? Cadê a escola? Cadê a saúde? Precisa pegar essas crianças, que a única coisa que têm para se espelhar é o traficante, e botar pessoas boas para fazer essas coisas. Não é o militar que vai resolver. Essa grita é ansiedade por segurança. É o medo”.
Apesar da opinião contundente, ela evita comentários sobre a intervenção federal no Rio de Janeiro, determinada pelo presidente Michel Temer em fevereiro: “Foi uma decisão realmente política e a gente cumpre aquilo que nos é determinado”. Sobre Temer, é irredutível: “É o meu comandante supremo e não vou tecer juízo de valor”.
Até 1997, a patente máxima a que uma mulher podia chegar na Marinha era capitão-de-mar-e-guerra, um degrau abaixo do posto de contra-almirante. Naquele ano, entretanto, o Corpo Auxiliar Feminino (CAF) foi extinto, e as mulheres integradas aos quadros masculinos. Hoje, de acordo com a Marinha, só as mulheres que atuam nas áreas de saúde, engenharia e intendência podem alcançar o almirantado. “Nunca achei que há papéis de homens e mulheres”, diz Dalva. “Tem papéis de profissionais, de militares. As pessoas se revestem do cargo. Quem é marinheiro nunca tira a farda. A farda pode sair do corpo, mas ela nunca sai da alma. Ela fica.”
Dalva atribui ao pai o fato de nunca ter se comportado como “menininha”. “Meu pai sempre foi muito rígido”, diz. “Sempre me criou para enfrentar o mundo. Dizia que filha dele não chorava. Isso se diz para menino, né?”. Segundo ela, quando o almirante-de-esquadra Maximiano Eduardo da Silva Fonseca — que comandou a Marinha entre 1979 e 1984 e foi incluído no relatório final da Comissão Nacional da Verdade entre os 377 nomes de responsáveis direta ou indiretamente por torturas e assassinatos durante a ditadura militar — resolveu incorporar mulheres à Marinha havia dúvidas no ar: “Será que vai dar certo? Será que as mulheres vão conseguir se adaptar?”, diz. “Chegou-se à conclusão de que não só se adaptaram, como a Força ganhou algumas coisas. A inteligência emocional da mulher permitiu que áreas fossem melhoradas. Ficou claro que não havia necessidade de ter um quadro só para mulheres. Nós podíamos perfeitamente nos integrar aos corpos e quadros existentes. A partir daí começaram os concursos mistos”.
No início do ano, Dalva participou, em Brasília, da solenidade de formatura das “meninas da escola naval”, nas palavras da contra-almirante. Quando se lembrou da ocasião, o semblante severo afrouxou e logo deu lugar às lágrimas: “Até me emociono”, diz. “É uma demonstração de que a gente está evoluindo. De que estamos tendo a oportunidade de fazer aquilo que a gente realmente quer, independentemente de sexo”. Ela mira o teto, ajeita as costas na poltrona e respira profundamente. “Por isso, digo: ‘Persiga seus sonhos’. Comecei com um sonho que nem podia sonhar, mas que de repente se tornou realidade.”
ÉPOCA/montedo.com

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