11 de abril de 2018

Como o General Villas Bôas descobriu a doença que está tirando seus movimentos

Personagem da semana: o general Villas Bôas
Como o comandante do Exército brasileiro — que postou tuítes bombásticos às vésperas do julgamento da prisão de Lula — descobriu a doença que está tirando seus movimentos
O general Eduardo Villas Bôas chega, em 28 de fevereiro, à cerimônia em homenagem ao general Antonio Hamilton Mourão (o terceiro da fila), que passava para a reserva (Foto: Michel Filho / Agência O Globo)
O general Eduardo Villas Bôas chega, em 28 de fevereiro, à cerimônia em homenagem ao general Antonio Hamilton Mourão (o terceiro da fila), que passava para a reserva (Foto: Michel Filho / Agência O Globo)
DÉBORA BERGAMASCO
O apartamento na Asa Sul, bairro de Brasília, voltara a ficar cheio. Os irmãos Ticiana, de 39 anos, Marcelo, de 38, e Adriana, de 32, reuniram-se na casa dos pais, Eduardo Villas Bôas e Maria Aparecida Villas Bôas. Com eles, genros e noras haviam ido comemorar com o casal as festas de fim de ano. Faltavam poucos dias para a ceia do Natal de 2016. Casa decorada, comida fervendo no fogão, geladeira abarrotada e a agitação típica de uma família comunicativa. O patriarca serviu-se de uma bebida e caminhou até a cozinha para devolvê-la ao freezer, a fim de evitar que o verão roubasse o frescor da garrafa ainda cheia. Com a mão esquerda, abriu a portinhola mais alta do refrigerador. Com a direita, quis elevar a garrafa e encaixá-la entre os produtos congelados. A mão desobedeceu. Tentou algumas vezes, sem sucesso. Surpreendeu-se com a rebeldia do próprio corpo. O general quatro estrelas, comandante do Exército brasileiro, liderança inconteste de 229 mil homens e subordinados, acabara de ser traído pela habilidosa mão direita. A mesma que fizera centenas de gols, durante a juventude, em jogos de polo aquático.
Na ocasião, ele não deu muita importância ao episódio. Atribuiu a falha à sequela de um acidente de motocicleta. Depois que os filhos cresceram, ele convencera a mulher de que estava na hora de retomar a antiga paixão de fazer passeios de motocicleta. Montado numa moto, deixava as armas de lado e transpassava sobre o peito a alça de viola caipira. Com o instrumento colado às costas, saía para tomar aulas de ponteio com um professor particular e reproduzir as canções de alguns de seus ídolos, como a cantora Inezita Barroso (1925-2015). No início de 2012, em um dos seus passeios sobre duas rodas, tomou um tombo feio. Foi operado e incorporou ao corpo placas e pinos.
A fadiga daquela véspera de Natal, no entanto, persistiu. Com o apoio da família, começou uma jornada angustiante de visitas a especialistas, laboratórios e hospitais — primeiro em Brasília, depois em São Paulo. O general não conseguia identificar e explicar aos médicos quando exatamente surgiram os primeiros sinais de fraqueza. Observava, no entanto, que as dificuldades estavam avançando a uma velocidade impressionante. Em um das dezenas de consultórios pelos quais passou, foi atendido por uma especialista. Sentados numa sala gélida, a médica lhe disse que ele estava sofrendo de uma neuropatia: uma doença que afetava de modo irremediável os neurônios ligados à coordenação motora. Ele ainda tentava processar a informação que lhe fora jogada ao colo com o peso de uma bigorna quando a doutora, sem rodeios, achou por bem compartilhar outra informação, polêmica para o momento: “Tive aqui um paciente com essa mesma patologia. Em quatro anos, ele mexia apenas o olho”.
O efeito foi devastador. Quando chegou em sua casa e contou à filha caçula, Adriana, sobre o diagnóstico e sobre o comentário da médica, porém, saiu-se com uma troça: “Uma pena que você não estava comigo na consulta. Na hora, eu só pensava que, se você estivesse comigo, com certeza você iria virar para ela e perguntar: ‘Mas, doutora, ele mexia só um ou os dois olhos?’”. Ambos caíram na gargalhada na tentativa de começar a juntar os cacos.
Até hoje, VB, como o general é chamado pelos amigos, não tem um diagnóstico fechado sobre sua doença. Sabe que a manifestação e as consequências são muito parecidas com as da esclerose lateral amiotrófica (ELA). A família Villas Bôas recebeu a notícia da enfermidade justamente na época em que a patologia passou a ser mais conhecida na sociedade por conta do lançamento do filme A teoria de tudo, sobre a vida do físico Stephen Hawking, e da campanha internacional do balde de gelo que levantou fundos para pesquisas de tratamento da doença.
Os familiares já lidavam com um diagnóstico havia mais de uma década de uma doença rara e incurável da caçula Adriana, portadora de espondilite anquilosante, uma inflamação crônica que causa dores constantes nas articulações — especialmente da coluna vertebral. O diagnóstico de Adriana preparara os parentes para a adversidade. Mas o do general teve um impacto ainda mais arrasador porque, segundo a literatura médica sobre doenças desse tipo, a expectativa de vida gira entre dois e quatro anos.
Ainda que de maneira discreta, já que apenas as pessoas mais próximas foram informadas, o comandante do Exército começou um tratamento intenso na capital paulista, com a patologista e neurologista Beny Schmidt, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e uma das maiores autoridades no assunto no Brasil. Com disciplina, o militar passou a trabalhar pesadamente o corpo com musculação e a subir correndo 20 andares pelas escadas. Mais que avanços na área física, o tratamento devolveu o brilho à vida da família e do paciente. “Não era sobre viver mais. Era sobre viver”, disse a filha Adriana ao relembrar o período em que Schmidt ajudou na preparação inclusive emocional para o que viria pela frente.
E o que veio e continua vindo não está sendo fácil. A vida do general mudou rapidamente. As viagens recorrentes a São Paulo geraram comentários dentro da corporação, que começou a desconfiar que algo não corria bem com o comandante. Em conjunto com sua equipe de comunicação e chefia de gabinete, ele tomou então a decisão de anunciar em uma entrevista para o site do Exército seu diagnóstico de doença neuromuscular. Soltou a bomba e esperou a repercussão. Ficou surpreso e ao mesmo tempo tocado. Passou a ser abordado por gente de alta e baixa patentes, por civis e por políticos que reiteravam o apoio para que ele continuasse no comando da corporação.
O dia mais difícil, uma prova de fogo, foi o 19 de abril de 2017, em que foi comemorada a data do Exército Brasileiro com uma solenidade com a presença do presidente da República Michel Temer, do ministro da Defesa, Raul Jungmann, milhares de soldados e autoridades das Forças Armadas e toda a imprensa nacional. Semanas antes, Villas Bôas começara um intenso treinamento com uma equipe de fisioterapeutas e treinadores. Ele tinha se dado a missão de se levantar da cadeira, caminhar até o púlpito, ler seu discurso em pé e voltar caminhando a seu lugar. A essa altura, ele já passava boa parte do tempo na cadeira de rodas, mas ainda conseguia andar. Fez e refez com sua equipe exaustivamente esse roteiro. A família e auxiliares mais próximos ficaram contra. Mas respeitaram a decisão.
No dia da solenidade, o comandante do Exército foi chamado ao púlpito. Lentamente, levantou-se da cadeira. Equilibrou-se sobre as pernas. E caminhou até o parlatório. A equipe e a família suavam. Com a voz emitindo sinais de fraqueza e de respiração ofegante, conseguiu ler seu discurso em pé, como se propusera. Ao fim da última palavra, uma sensação de alívio percorreu o Quartel-General do Exército em Brasília. Mas, ao se virar para descer, as pernas não responderam. Villas Bôas caiu na frente de todos. Foi rapidamente amparado por auxiliares que o levaram de volta à cadeira. Mesmo sem expressão de choro, as lágrimas brotaram espontaneamente de seus olhos. Rolaram sobre suas bochechas, que ardiam vermelhas. Michel Temer, a seu lado, inclinou-se para o comandante e comentou: “Comandante, belíssimo seu discurso hoje, não é mesmo?”. Depois desse episódio, relatou aos mais próximos que guardara a noção da deferência e do respeito por sua pessoa, a despeito da doença que passava a portar.
Hoje, está com movimentos cada vez mais prejudicados. Não consegue mais levar um copo à boca e usa canudo para beber. Para saudar as pessoas, pega a mão esquerda e tenta elevar o braço direito à altura do cumprimento. Evita agendas longas e viagens. Quando pega avião, precisa de equipamento de respiração para auxiliá-lo. Entre uma audiência e outra, uma equipe de fisioterapia faz exercícios com ele para abrir o tórax e facilitar a passagem de ar. A mente continua intacta. Sua principal diversão é reunir-se com a família em torno da mesa, para beber alguma dose de sua coleção de cachaças. Ele adora as preciosidades que ganha em suas andanças pelo país, como pingas acondicionadas em garrafas PET de plástico. Acha que cai bem com uma comida encharcada com tempero de limão.
Continua trabalhando, distribuindo ordens e ativo no Twitter. Na terça-feira, dia 4, na véspera do julgamento do habeas corpus para evitar a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, escreveu uma mensagem de “repúdio à impunidade”. “Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente pensa no bem do país e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais”, disse Villas Bôas em sua conta no Twitter. Na mesma mensagem, reiterou que o Exército está atento ao respeito à Constituição e a suas “missões institucionais”. Os tuítes causaram polêmica e foram interpretados como uma pressão indevida do Exército sobre o STF e uma intromissão incabível dos militares em assuntos políticos que não lhes cabem. O Ministério da Defesa, em nota, refutou essas interpretações e disse que a manifestação de Villas Bôas foi uma “mensagem de confiança e estímulo à concórdia”, na qual ele “mantém a coerência e o equilíbrio demonstrados em toda a sua gestão”. Num país que viveu sob uma ditadura por 21 anos, os tuítes deixaram, porém, mais um sinal de inquietação em uma longa crise política.
ÉPOCA/montedo.com

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