16 de setembro de 2013

Procuradora vê sexo dentro dos quartéis como "expressão social da libido'

Atualização: 15h31
Direitos Humanos
PGR pede a STF para suprimir crime de pederastia do Código Penal Militar
Contra a punição ao sexo nas Forças Armadas
PGR pede ao Supremo que considere inconstitucional o crime de pederastia previsto no Código Penal Militar, alegando tratar-se de discriminação. Justiça recebe um caso por mês, em média, de prática sexual nas dependências das Forças Armadas

Correio Braziliense
A Procuradoria Geral da República (PGR) quer que o Supremo Tribunal Federal (STF) declare inválido o artigo 235 do Código Penal Militar que define o crime de “pederastia e outro ato de libidinagem”. Pela legislação atual, a prática de sexo consensual, “homossexual ou não”, dentro de locais sujeitos à administração militar é punida com até um ano de detenção. A norma se mostra incompatível com direitos fundamentais expressos na Constituição, tais como dignidade da pessoa humana, igualdade e liberdade, sustenta a procuradora-geral da República em exercício, Helenita Caiado de Acioli. Ela é a autora da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), enviada na última semana ao STF, contra parte da lei militar em vigor.
“Além da discriminação clara contra a orientação sexual de alguns indivíduos, a norma impugnada possui como um de seus focos a tentativa de limitar a liberdade sexual dos militares”, afirma a PGR no texto da ação. Ela questiona ainda a proibição legal do sexo mesmo nos momentos em que não há serviços em execução. “Isto é, pouco interessa se o militar está deitado em seu quarto dentro do quartel ou em suas acomodações no navio (…) Ora, nesses momentos, não existe razão para impedir a expressão social da libido, que constitui alocação de energia essencial à aquisição de felicidade”, defende Helenita. O ministro Luís Roberto Barroso foi sorteado para ser o relator da ADPF.
Ciente das resistências que o tema deve enfrentar, a PGR fez um segundo pedido ao STF. Caso a Corte não concorde que o artigo 235 do Código Penal Militar e a Constituição Federal de 1988 são incompatíveis, que pelo menos declare inconstitucionais o termo “pederastia” e a expressão “homossexual ou não”, presentes na legislação questionada. “Os termos utilizados demonstram de forma pejorativa, no uso do primeiro, e discriminatória, no uso da frase, quem se quer atingir”, diz Helenita, na ação, ao ressaltar que os gays são o alvo do crime previsto na lei, editada em 1969, período ditatorial no Brasil.
Levantamento feito pelo Superior Tribunal Militar (STM) a pedido do Correio mostra que 120 casos de crime de pederastia ou outro ato de libidinagem chegaram à primeira instância da Justiça Militar no país na última década — média de um por mês. A Corte não soube informar, entretanto, quantos se referem a relações mantidas por pessoas do mesmo sexo. A procuradora Helenita ressaltou, na ação, que por motivos óbvios os punidos são, na maior parte das vezes, os homossexuais. “É notório que a grande maioria do contingente das Forças Armadas é masculina (…) Assim, o contato físico diário e constante que normalmente acontece se dá entre homens”, diz. O número levantado pelo STM só engloba profissionais das Forças Armadas, mas não inclui eventuais casos que chegaram direto naquela Corte, devido ao fato de os envolvidos terem alta patente na hierarquia militar.
Helenita ressalta, na ADPF, que a diversidade sexual dentro do mundo militar é uma tendência global, mencionando que os Estados Unidos revogaram, em 2010, política que impedia aos abertamente gays o acesso às Forças Armadas — mesma atitude tomada pela Inglaterra, em 2000, e Israel, em 1993. “A própria compreensão das Forças Armadas enquanto executora de missões sem tempo determinado torna incompreensível tal criminalização”, assinalou. A ação ajuizada pela procuradora-geral é fruto de uma representação encaminhada à PGR, há cerca de um ano, por um grupo de sete entidades não governamentais, como a Clínica de Direitos Humanos do Centro Universitário Ritter dos Reis, o Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero de Brasília e o Instituto de Acesso à Justiça.

Entrevista Roger Raupp Rios
Para juiz, lei reforça estigma contra gays
Juiz federal em Porto Alegre e integrante da Clínica de Direitos Humanos do Centro Universitário Ritter dos Reis — uma das entidades que provocaram a Procuradoria Geral da República a levar ao Supremo Tribunal Federal o tema do crime de pederastia —, Roger Raupp Rios foi o primeiro magistrado no Brasil, ainda em 1996, a reconhecer os efeitos civis da união entre pessoas do mesmo sexo. A sentença inovadora, sobre direito de acesso ao plano de saúde, despertou no juiz o interesse pelo tema da diversidade sexual na Justiça. Confira os principais trechos da entrevista concedida por um dos maiores especialistas brasileiros no assunto:

Como o artigo 235 do Código Penal Militar fere a Constituição Federal?
Ao destacar um grupo específico (homossexuais) e usar um nome que em toda a história da humanidade esteve associado a um estigma moral (pederastia), a lei sublinha esse juízo estigmatizante. São palavras carregadas de depreciação, de conotação negativa, contrárias aos princípios constitucionais.

Mesmo a lei falando em “homossexuais ou não”, ou seja, punindo também heterossexuais, há discriminação?
A discriminação não se dá apenas na letra da lei, nas palavras que são usadas, mas também na aplicação dela. A jurisprudência mostra que, mesmo depois da Constituição de 1988, os casos continuaram a ser julgados, tanto de homossexuais quanto de heterossexuais. Só que a fundamentação no caso dos homossexuais traz argumentos muito mais depreciativos, porque a lei não trata as identidades sexuais com igualdade, já trazendo um claro viés discriminatório.

A proibição do sexo na caserna não se justifica pela lógica da ordem militar?
Há autores que sustentam que o direito penal deve ser utilizado quando não houver outro remédio, dentro da ideia de intervenção mínima do Estado. O sexo em local sob administração militar é algo tão grave a ponto de justificar uma penalização? Aí é uma questão de medida. O legislador poderia optar por um instrumento penal ou outro, não penal, administrativo, por exemplo. Mas nunca discriminatório.

STM quer mudança
Superior Tribunal Militar (STM), por meio da assessoria de imprensa, informou ser favorável a mudanças no texto do Código Penal Militar, para a retirada do termo “pederastia” e da expressão “homossexuais ou não”. No entanto, diferentemente do que pretende a Procuradoria Geral da República (PGR), o tribunal entende ser necessário manter como crime a prática de relações sexuais dentro das instituições sob comando militar. A retirada das palavras pejorativas já foi, inclusive, sugerida ao Congresso Nacional pelo STM durante a tramitação do Projeto de Lei nº 2.773/2000, cujo objetivo é modificar a norma em questão.
A matéria, pronta para entrar na votação do plenário, está parada na Câmara dos Deputados desde abril de 2012. Na Ação de Descumprimento de Preceito Constitucional (ADPF) enviada ao Supremo Tribunal Federal (STF), a procuradora-geral da República em exercício, Helenita Caiado de Acioli, menciona a morosidade legislativa para tratar do assunto. A demora dos parlamentares, sustenta, justificaria a intervenção da Procuradoria Geral da República (PGR).
Como a decisão do Supremo na ação terá efeito vinculante, a ideia é fazer com que todos os tribunais militares e a administração pública fiquem impedidos de aplicar essa parte da lei penal, mesmo que o Legislativo nunca faça a mudança. Procurado pelo Correio para comentar a ação ajuizada no STF, o Ministério da Defesa, por meio da assessoria de imprensa, não deu retorno até o fechamento da edição. (RM)

A lei
O artigo 235, questionado no STF, está no capítulo VII do Código Penal Militar. Define o crime de “pederastia ou outro ato de libidinagem” o ato de “praticar, ou permitir o militar que com ele se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito a administração militar”.

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