30 de janeiro de 2010

HAITI: ENTREVISTA COM O COMANDANTE DOS FUZILEIROS NAVAIS

Antônio Marinho
Mais de duas semanas após o terremoto que devastou o Haiti, a maior dificuldade dos militares brasileiros é dar conta das inúmeras tarefas nas quais estão envolvidos, principalmente garantir a distribuição de água e alimentos à população, e ainda reforçar a segurança para evitar saques aos depósitos de alimentos e às instalações da ONU. O capitão-de-fragata FN Júlio César Franco da Costa, comandante do Grupamento Operativo dos Fuzileiros Navais da Marinha do Brasil no Haiti (XI Contingente), diz que os militares estão se desdobrando para realizar todas as atividades e, apesar da sobrecarga e do cansaço, sentem-se felizes em poder ajudar aos haitianos. Em entrevista por e-mail, ele conta como os fuzileiros brasileiros enfrentaram as primeiras horas após o tremor e fala da situação do país hoje.
O GLOBO - Qual é o efetivo do grupamento de fuzileiros navais brasileiros no Haiti? Qual era a principal missão ou função do seu grupamento antes do terremoto do dia 12? O que mudou no dia a dia dos militares depois da tragédia?
FRANCO - O Grupamento Operativo no Haiti tem 209 militares (19 oficiais e 190 praças). Nosso período estava previsto para terminar na próxima sexta-feira, dia 29 de janeiro. Com o terremoto, ficaremos até 5 de fevereiro de 2010. As principais tarefas eram cuidar do Ponto Forte 9 (a fábrica de gelo), na região de Citè Militaire; fazer o patrulhamento motorizado, mecanizado e a pé; apoiar a patrulha marítima da Polícia Nacional do Haiti (PNH); fazer a segurança da Penitenciária de Porto Príncipe e do Palácio Nacional em revezamento com o Brabatt, o batalhão brasileiro da Minustah. Entre outras atividades, estávamos nos preparando para as eleições que ocorreriam no final do próximo mês. Cabia ao nosso grupamento os trabalhos da Ilha de La Gonave, a 50km do porto de Porto Príncipe. Provavelmente, o pleito não ocorrerá na data marcada, porém toda a preparação para as eleições foi executada. Depois do terremoto, deixamos de cuidar das instalações que desabaram. Por outro lado, aumentou a nossa participação em missões de ajuda humanitária, como escolta de comboios de alimentos; segurança de equipes de resgate de diversos países, inclusive do Brasil; doação de alimentos a diversas comunidades carentes; escolta da Polícia Nacional do Haiti para recolhimento de dinheiro de bancos que desabaram para outras agências intactas; reconhecimentos de portos ao norte do país; segurança de depósitos de alimentos da ONU; e segurança a distribuições de alimentos realizadas por organismos internacionais.

GLOBO - Quais são as maiores dificuldades hoje?
FRANCO - Elas dizem respeito à quantidade de tarefas. A fim de manter o mesmo padrão de excelência, os fuzileiros do Brasil têm se desdobrado e se desgastado bastante. Vale lembrar que já havia começado o rodízio das tropas quando o tremor ocorreu, ou seja, já estávamos completando o sétimo mês de missão. Porém um fator que tem nos ajudado a manter o padrão é que não sofremos qualquer perda de material e pessoal, nem sequer feridos.
GLOBO - Quais são as maiores necessidades da população do Haiti hoje? Vemos muitos haitianos reclamando que estão com fome, sede e não recebem comida. O que está sendo feito para melhorar o atendimento à população? Existe um sentimento de frustração por não poder ajudar mais?
FRANCO - As maiores necessidades da população são água, alimentos, casa, emprego e saúde. Em uma semana, o nosso grupamento de fuzileiros distribuiu cerca de 15 toneladas de alimentos e 35 mil litros de água engarrafada. Todos os alimentos e água recebidos pelos fuzileiros têm sido distribuídos. Para evitar tumultos, estamos entregando esse material diretamente nas comunidades, geralmente de madrugada, quando as pessoas ainda dormem ou estão despertando, ou seja, em horas mais calmas; e ainda por meio de ligação com os líderes comunitários. Tudo isso é fiscalizado por nossas patrulhas. Antes do terremoto, os haitianos estavam vivendo uma situação mais estável. Havia pobreza, entretanto percebia-se claramente que as pessoas estavam menos infelizes. E Porto Príncipe encontrava-se pacificada, graças, em grande parte, à atuação das tropas brasileiras desde 2004. Agora é preciso manter o nível de segurança obtido. As principais instituições governamentais perderam integrantes e instalações. Apesar disso, não temos o sentimento de frustração. Todos têm trabalho na recepção e entrega dos alimentos, e sabem que tudo que foi recebido está sendo doado. Se não fazemos mais, é porque está além de nossa capacidade.
GLOBO - Depois do terremoto do dia 12 ocorreram outros abalos. As tropas estão sendo treinadas ou preparadas para enfrentar novos tremores? Como está a moral da tropa?
FRANCO - Seguimos procedimentos em nossa base na hora de tremores mais violentos, como, por exemplo, abandonar os alojamentos, fechar o gás de cozinha, desligar os geradores, concentrar todo pessoal no pátio central para verificar se há feridos e danos a instalações. No terremoto do dia 12, não tínhamos ideia do que estava acontecendo. Foi um grande susto. Quando começamos a perceber a gravidade do que ocorrera, verificamos os danos na base e procuramos saber a situação dos 32 fuzileiros que estavam nas ruas da capital e no Ponto Forte. Todos os grupos tinham telefones celulares ou rádios militares, mas não havia sinal de celular e as nossas antenas haviam caído. Em duas horas, descobrimos que todos os nossos militares estavam bem. Nessa noite, dormimos todos no pátio central, ao relento, pois não sabíamos o que poderia acontecer. Nosso ânimo sempre esteve e está elevadíssimo. Tivemos muita sorte e Deus nos ajudou. Nas primeiras 24 horas após o grande tremor sofremos mais de 40 outros pequenos tremores sem danos às nossas instalações.
GLOBO - Antes do terremoto, o Haiti estava praticamente pacificado. Agora parece que tudo voltou à estaca zero, ao período anterior a 2004, quando facções disputavam o domínio em favelas. A violência aumentou depois do sismo? Vemos imagens de saques, de ataques a crianças e idosos. O senhor acha que será possível recuperar o Haiti?
FRANCO - O Haiti permanece pacificado. Não há gangues ou indícios de violência nas comunidades. Diria que os casos que têm ocorrido são muito esporádicos e nem um pouco diferentes dos episódios anteriores ao terremoto. A segurança está controlada e acredito que a imprensa tem exagerado um pouco quando fala sobre violência, saques e ataques a idosos e crianças. Na nossa área de atuação, isso não tem acontecido, e a população tem reconhecido nosso esforço em fazer chegar as doações recebidas e tem nos apoiado. Os haitianos a cada dia que passa nos surpreendem, seja pela esperança que nunca perdem ou pelo sorriso ao percebem nosso respeito e as nossas ações para ajudá-los com o máximo que podemos. Sabem com quem podem contar, e estamos com eles desde 2004.

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